sexta-feira, 3 de julho de 2009

Entrevista: Músico tem de ser empreendedor

O americano naturalizado brasileiro Vince de Mira, 31 anos, é uma voz fundamental na cena da música alternativa independente baiana. Embora sua imagem esteja associada no posto de vocalista dos variados gêneros musicais nos quais passeiam as composições do grupo Lampirônicos, Mira também participou da saudosa banda Cumbuca, extinta de suas atividades desde 2004. Considerado como uma espécie de empreendedor da música, ele idealizou o Zona Mundi, evento intencionado a mesclar shows de artistas locais e de outros estados. Nesse ambiente, as performances vão desde música, vídeo-arte as novas tendências do mundo digital. Além disso, já adicionou outro importante trabalho ao seu currículo: o projeto Terreiro Circular, voltado a articular artistas, técnicos e produtores em um sistema sincronizado de produção da música. Não necessariamente nesta mesma ordem de tempo de producão, ele idealizou o selo Maquinário, essencial na proposta de realizar conferências além de divulgar discos de artistas ou bandas independentes que ainda trilham o atribulado caminho da consolidação. Ao blog NOITE PONTO SOM, em entrevista exclusiva, o músico destaca que as políticas públicas em termo de cultura na Bahia, estão dando um passo adiante com a publicação de editais para o setor. Por outro lado, campanhas massivas propagando a importância do ingresso dos shows para os artistas têm de ser priorizadas. Valores de entrada para os eventos têm de se adequar à realidade local. “É importante que as pessoas compreendam a função do artista e dos técnicos na promoção da diversidade cultural”, disse Vince, relembrando o nome das cidades européias nas quais tocou com o Lampirônicos. Entre os próximos projetos do cantor, estão os lançamentos de um CD autoral e um vídeo, ambos em fase de criação. Leia abaixo.

NOITE PONTO SOM – A sua relação com música se deu como?

VINCE DE MIRA -
Desde os 16 anos. Meu pai foi dono de uma casa de show entre o final da década de oitenta e início de noventa. Lá, Tom Zé fez seu último show na Bahia antes de ir morar nos Estados Unidos a convite de David Byrne. Passaram por lá também Gerônimo, Magareth Menezes, Tuzé de Abreu, Grupo Garagem, Batatinha, Nelson Rufino, dentre outros. Eu costumava abrir algumas noites apenas com voz e violão. Sempre fui meio queixão, rsrs. No meu repertório sempre estiveram presentes músicas de Baden Powell, João Gilberto, Jorge Ben...

NOITE PONTO SOM – Você foi vocalista do grupo Cumbuca. Poderia falar um pouco sobre qual era a proposta musical de vocês na época?

VINCE DE MIRA -
O Cumbuca iniciou as temporadas, se não me engano, em 2000 e parou no início de 2004, com a minha ida para o Lampirônicos. Ainda tentei manter os dois trabalhos, mas infelizmente não foi possível. A primeira formação do Cumbuca era com Tadeu Mascarenhas nos teclados e Ordep Lemos na bateria, não tinha percussão. Logo no início, Tadeu saiu e entraram dois percussionistas em seu lugar: Mamá Soares e Ricardo KK. Com a entrada deles, a banda passou a buscar uma sonoridade de melodias brasileiras interpretadas de forma visceral, assim como as levadas de percussão de rua. Queríamos passar uma Bahia cosmopolita, com influências do trip hop (Portshead, Massive Atack), muito peso e grooves coesos. A banda, em 2002, lançou o CD “Cidade de São Camaleão”, já sem Ordep que tinha acabado de fechar contrato com o Lampirônicos e a Sony Music. Daí entrou Nairo Ello na banda. A formação que gravou o disco era eu no vocal, Gilberto Monte na guitarra, Charles Veiga no baixo, Mamá Soares e Ricardo KK na percussão e Nairo Ello na bateria.

NOITE PONTO SOM - Como ocorreu de você entrar na banda Lampirônicos?

VINCE DE MIRA -
Rapaz... Eu já era amigo dos caras. Já fazíamos som juntos. Nikima já assinava algumas faixas do Cumbuca em parceria comigo e eu estava assinando uma faixa no disco seguinte deles, que veio a ser o “Toda Prece”. Quando Nikima resolveu sair, os caras me ligaram. O próprio Nikima me aconselhou a ir fazer a turnê na Europa, que já estava agendada. Sempre tive vontade de ter essa experiência, ainda mais pela abertura que o mercado europeu tem para a música feita no Brasil. Vi como uma oportunidade bacana. Mesmo assim, no início resisti muito. Tinha acabado de lançar o CD com o Cumbuca e estava adorando o disco. Enquanto que os caras começaram a fazer testes, eu até indiquei alguns nomes, mas não deu certo. Então eles voltaram a me procurar, pelo menos para fazer a tour pela Europa. Aí topei. E foi muito bom ter feito esses shows, rolaram composições novas, a turnê foi muito bacana e curti conviver com a banda. Não existiu um integrante que me fez o convite. Foi um convite coletivo. Isso colaborou muito para que eu entrasse no grupo.

NOITE PONTO SOM - Fora o vocalista que saiu, a banda Lampirônicos continua com a mesma formação musical?

VINCE DE MIRA –
Atualmente, o único da formação original é Robertinho Barreto, que toca guitarra e guitarra baiana.

NOITE PONTO SOM - Mudou algo na parte musical ou vocal após a sua entrada?

VINCE DE MIRA -
Música criada coletivamente é feita por uma soma de elementos que aparecem de acordo com a expressão de cada pessoa que faz parte do processo. Com a minha entrada, a banda passou a ter um novo elemento, assim como se perdeu outro que era Nikima. Hoje o grupo soa bastante diferente do que era no início.

NOITE PONTO SOM – Quem produziu o show do Lampirônicos na Europa? Houve alguma dificuldade para ir toca fora?

VINCE DE MIRA -
O convite partiu de Daniel Rodrigues. Ele já atua na Europa há mais de 15 anos. Fizemos shows nas cidades de Tubingen na Alemanha, Montreux na Suíça, Londres, Lisboa, Coimbra, Leiria e nos Açores, em Portugal e em Antuérpia, na Bélgica. A resposta do público foi muito boa. Achamos que podíamos ter realmente uma carreira fora do Brasil. Tivemos os dois primeiros discos do grupo distribuídos pela VIP Music em alguns países da Europa, porém, tivemos uma dificuldade muito grande com as passagens aéreas, item mais caro de uma turnê. No primeiro ano, Daniel fez esse investimento inicial e conseguiu amortizar com os shows. No segundo ano, conseguimos algumas passagens com o Ministério da Cultura. Nos anos seguintes, não conseguimos as passagens e o negócio começou a ficar inviável.

NOITE PONTO SOM - Como o Lampirônicos faz para negociar sua obra? Possuem contrato com gravadoras ou tem gestão independente?

VINCE DE MIRA -
Temos uma gestão totalmente independente. Hoje, a maioria das músicas são editadas pela Maquinário, principalmente, as de minha autoria e dos novos integrantes. O “Caia na Madrugada”, último disco da banda, foi produzido dessa forma desde a produção até a distribuição. Não focamos a distribuição desse disco em lojas de CDs, mas nos sites de relacionamento como My space, Last fm e em venda de CDs nos shows. Esse disco contou com a participação de Pio Lobato, um dos pesquisadores da guitarrada paraense e de Bau Carvalho, ex-guitarrista da banda. Os produtores do disco foram Mangaio e Marcelo Santana, integrantes da banda.

NOITE PONTO SOM - Poderia explicar como ocorre o método de composição no grupo, rola jams?

VINCE DE MIRA -
Nem sempre rolam jams... Geralmente componho letra, melodia e harmonia no violão e a banda trabalha os arranjos coletivamente. No Lampirônicos são poucas as músicas compostas através de uma jam. O que rola é que Roberto, por exemplo, muitas vezes tem uma parte de letra ou um riff que coloco letra e melodia. As instrumentais, quando autorais, são em sua maioria de Roberto.

NOITE PONTO SOM – O grupo Lampirônicos conta com estúdio próprio né? Sobre esse estúdio, quais equipamentos o compõem para gravações externas caso alguém queira fazer algum trabalho?

VINCE DE MIRA -
Na verdade, no início a sociedade do estúdio era entre os membros do Lampirônicos, mas logo isso se dissipou e ficamos eu, Marcelo e Mangaio. Hoje, eu e Mangaio saímos do estúdio. Os custos são altos, resolvemos investir em home estúdio mesmo. Mangaio tem até produzido trabalhos de outros artistas. Marcelo ainda mantém o mesmo estúdio, em sociedade com o cantor Márcio Mello. A entrada de Márcio deu uma guinada no trabalho de Marcelo, que como técnico e produtor de áudio promete bastante. Eles possuem equipamentos de ponta, tanto na captação do áudio (microfones AKG, Neuman) como ótimos pré-amplificadores (3 prés SSL 9000 + 1 SSL VHD com quatro entradas e um conversor da wave) e plataforma Pro Tools.

NOITE PONTO SOM - Quais intenções te levaram a montar o selo Maquinário? O que tem produzido?

VINCE DE MIRA -
Resolvi montar o Maquinário para poder pleitear recursos junto à iniciativa privada e a órgãos públicos para lançar novos projetos na área artística de forma independente. Ele hoje funciona como uma produtora de eventos culturais e edita fonogramas. Não temos muito o perfil de trabalhar com novos artistas, pois demanda um investimento muito grande. Um artista que está começando precisa de investimento e não temos estrutura para investir em artistas. Temos o projeto Terreiro Circular que pretende lançar algumas coletâneas de artistas de outras áreas de Salvador e do interior do Estado, através de um programa de formação de agentes circulares em todo estado como forma de promover o intercâmbio intermunicipal na música, promovendo a circulação de diferentes artistas dentro do estado. Outro projeto está sendo realizado no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM), o Zona Mundi – Circuito Eletrônico de Som e Imagem, onde artistas de outros estados monitoram workshops nas áreas de vídeo arte, Vjing e música, gerando conteúdo para apresentações artísticas integradas. No verão de 2008 promovemos o “Baile Afrobeat”, ciceroneado pela Radiomundi. O baile foca em apresentações no formato de Live PA, baseados em loops extraídos de temas de Afrobeat, Dub e música brasileira. No segundo semestre devemos voltar com o evento.

NOITE PONTO SOM - Em sua opinião o que é necessário para divulgar de forma abrangente a cena independente baiana em outros mercados?

VINCE DE MIRA -
Acho que a nova música da Bahia precisa atuar de uma forma mais estratégica no ciber espaço. A construção de portais, a sincronização de ações de agentes da cadeia produtiva é indispensável (músicos, jornalistas, técnicos, produtores, artistas gráficos, vídeo – makers, etc...). Acho que os músicos e produtores precisam ser mais agressivos no mercado buscando formar redes de trabalho que garantam a sustentabilidade através da arte. A criação das redes, ao mesmo tempo em que pode viabilizar realizações de eventos, pode funcionar como uma forma de distribuição de produtos físicos e digitais, através de blogs, grupos de discussão, gerando assim uma mídia espontânea absurda. Precisamos dar continuidade às discussões, como a criação de um fórum estadual para que esse fórum se associe com outros fóruns e entidades da região nordeste. E, mais tarde, esse fórum regional gere representações para a construção de um fórum nacional sólido, juntamente, com representações de outras entidades que estão bem mais avançadas no país, como o Circuito Fora do Eixo e a ABRAFIN, por exemplo. Todas essas ações seriam um meio para interlocução da categoria da música com o Estado e com o governo federal na intenção de firmar acordos para políticas públicas para o setor. Um modelo bacana de rede é a do Espaço Cubo no Mato Grosso, os das Redes Rio e Ceará de música, entre outros que estão em estado muito mais avançado do que a Bahia. Do final do ano passado para cá, as coisas melhoraram. Já existem algumas articulações de artistas e produtores para a formação de uma ou mais organizações aqui, embora ainda não se tenha uma estruturação real disso.

NOITE PONTO SOM – Analisando o quesito noite em Salvador, os espaços são suficientes para a demanda de bandas? A viabilização de shows de música independente é boa?

VINCE DE MIRA -
À noite em Salvador ainda não está boa. Não está também pior que em outros estados, principalmente, do nordeste, vale a pena ressaltar. Temos alguns espaços que não são muitos, mas existem. Existe a Boomerangue, a Zauber Multicultura, o Portela Café, a Borracharia, Sankofa African Bar no Pelourinho, o Word Bar na Barra, outros espaços na Pituba... Talvez tenha me esquecido de alguns. Mas esses são os mais em pauta. É preciso que os artistas não esperem somente à ação dos produtores para poder realizar algo. É necessário estar intrínseco no artista o espírito empreendedor. O boi só engorda com o olhar do dono, não acha? Depois que a coisa começa a andar o artista tem que passar a delegar funções. É necessária uma cooperação maior entre os artistas, sim. Agora, é necessária uma cooperação profissional e não de “brodagem”, que é o que tem rolado muito em Salvador. Falo em Salvador, pois a ações no interior ainda são muito pequenas. É necessário que os artistas e produtores se articulem com os donos das casas de shows, pois fazem parte da mesma cadeia. Precisam achar juntos soluções para viabilizar shows. Acho que o estado tem feito conceitualmente o seu trabalho, gerando editais para ocupação de espaços públicos (Pelourinho, Sala do Coro, os domingos do TCA, Ocupação do Espaço Xisto, etc...), embora essa crise esteja atrapalhando um pouco as coisas. O estado não tem pago aos artistas. A fazenda não tem repassado o recurso para a cultura e isso é desmotivador. Tomara que isso se resolva logo. Outro elemento que conta bastante para a falta de motivação do empreendedor da música é o público consumidor em potencial. As pessoas não têm a cultura de pagar para os shows.

NOITE PONTO SOM – Que ação neste caso mudaria esse quadro cultural de não pagar shows, uma vez que alguns acham que só porque é amigo tem o direito de entrar de graça?

VINCE DE MIRA -
É necessário se fazer um estudo de escala do público consumidor na Bahia para saber até quanto essas pessoas podem pagar pelos ingressos e consequentemente os eventos podem se adequar a essa realidade. É necessário que essa pesquisa seja acompanhada de uma campanha de conscientização da importância que o ingresso dos shows tem para o artista, para que o público continue tendo acesso à cultura. É importante que as pessoas compreendam a função do artista e dos técnicos na promoção da diversidade cultural. Faço minha a máxima da eletrocooperativa, por exemplo, ”música livre e comércio justo”.

NOITE PONTO SOM - Quais são seus projetos futuros, como músico e produtor?

VINCE DE MIRA -
Atualmente estou realizando o Zona Mundi no MAM. O projeto tem tido um retorno de público bem interessante. Preciso conversar com a direção do MAM para saber se eles têm interesse que o projeto se torne permanente a partir de 2010. Pretendo ainda começar a gravar esse ano um EP com minhas composições e lançar um projeto áudio-visual que eu e Mangaio estamos amadurecendo. O projeto Terreiro Circular também deverá ser realizado em um novo formato, mais voltado para a formação de agentes para uma rede de trabalho coletivo em todo o estado.

Crédito das fotos - Ricardo Prado

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