segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Entrevista – Uma entusiasta do Samba

Não existe na música baiana canto e dança tão singular e elegante como o da cantora Clécia Queiroz. Parece elogio de fã mais não é. De fato, é agradável ouvir seu recente disco, Samba de Roque, uma compilação de músicas do compositor, Roque Ferreira, onde a cantora expressa afeição e sintetiza respeito místico ao trabalho do autor. O disco, conta com arranjos elaborados, além disso, a banda que gravou é afinada, madura e produz um som com uma identidade toda própria. Já no palco, a atuação de Clécia cria um misto de gêneros do samba-de-roda, onde ecoa legítimos personagens do universo popular cotidiano. A formação e mestrado em dança da cantora ajudam há transmitir novas sensações ao público, em suas apresentações. Além do canto refinado, a cantora é uma mente inquieta. Em entrevista exclusiva, ao blog NOITE PONTO SOM, Clécia Queiroz sempre busca algo de relevante para transformar a cena de samba na cidade. Algo que traduz como inovação e que bem define o seu recado. “Em 2003 criei um projeto chamado Casa do Samba. Isso numa época em que quase ninguém falava de samba em Salvador, e não havia espaços reservados a esse gênero musical, que é a raiz de toda musicalidade brasileira”, relembra. Nessa entrevista, a cantora fala sobre sua carreira, shows fora do Brasil, parcerias, projetos e o atual disco. Confira.

NOITE PONTO SOM - Como iniciou sua relação com a música e quando pensou em fazer disso profissão?

CLÉCIA QUEIROZ -
A música surgiu na minha vida quando completei 15 anos e ganhei um violão de presente de aniversário. Estudei música erudita e popular, participei de um festival no Colégio Marista, ganhei em primeiro lugar, mas não pensava em ser cantora, aliás, era a última coisa que poderia imaginar. Não me acreditava, nem me imaginava como cantora. Foi participando como atriz em musicais que de repente as pessoas e os críticos de jornais começaram a falar de minha voz e assim comecei a pensar que poderia fazer um show. E o primeiro deles, me trouxe muitas alegrias como, por exemplo, ter recebido quatro indicações no Troféu Caymmi, incluindo a de melhor intérprete. Daí em diante não parei mais de cantar.

NOITE PONTO SOM - E o gosto pelo samba como surgiu?

CLÉCIA QUEIROZ -
Costumo dizer que o grande barato do samba-de-roda é que ele é múltiplo: ritmo, melodia, texto, dança, encenação e participação da audiência. E o meu gosto pelo samba vem através do corpo no samba-de-roda. Aos 13 anos entrei numa escola de dança que incluía muitas linguagens e uma delas era a de dança popular com Mestre King. No primeiro momento em que me ensinaram a dançar o samba de roda, saí dançando como se aquilo fizesse parte da minha vida desde sempre. Logo fui convidada, ainda criança a fazer parte do grupo de dança do Sesc e comecei a atuar como dançarina ainda muito jovem. Minha paixão pelo samba-de-roda aumentou com a pesquisa de Neuza Saad (Bebé) na Escola de Dança da Ufba, onde me graduei. Com ela fiz parte do grupo e de dois grupos de dança. O samba de roda era uma das molas mestras desses trabalhos. Depois, já como cantora, quis trazer essa pesquisa para o meu trabalho musical e em 2003 criei um projeto chamado Casa do Samba. Isso numa época em que quase ninguém falava de samba em Salvador e não havia espaços reservados a esse gênero musical, que é a raiz de toda musicalidade brasileira.

NOITE PONTO SOM – De quando há quando funcionou a Casa do Samba?

CLÉCIA QUEIROZ -
Funcionou entre agosto de 2003 e julho de 2004, sempre às sextas feiras e envolveu muitos compositores de samba da velha e da nova geração, além de muitos cantores que junto comigo somente cantavam samba nos shows do projeto.

NOITE PONTO SOM – Quais nomes passaram por esse projeto?

CLÉCIA QUEIROZ -
Passaram por ali nomes como: Walmir Lima, Edil Pacheco, Roberto Mendes, Raymundo Sodré, Batifum, Lazzo, Gerônimo, Carla Visi, Andréa Daltro, Ilê Ayê, Paulinho Boca de Cantor, dentre outros.

NOITE PONTO SOM – E por que foi extinto?

CLÉCIA QUEIROZ -
Porque recebi uma bolsa de estudos da Fundação Ford para fazer mestrado nos Estados Unidos. Quando voltei, retomei o projeto de samba em 2007, fazendo shows semanais em alguns espaços de Salvador como Tom do Sabor e Jequitibar Café, varanda do Teatro Sesi - Rio Vermelho, que culminou na gravação do CD “Samba de Roque”.

NOITE PONTO SOM – Quais são as suas principais influenciais musicais?

CLÉCIA QUEIROZ -
No samba, além das já citadas, são Dorival Caymmi, Carmem Miranda, Paulinho da Viola, Elza Soares, Martinho da Vila, Wilson Simonal, Elis Regina. Ultimamente, tenho ouvido muito os grupos de samba do Recôncavo com; Samba Chula de São Brás, Samba Swerdick (D. Dalva), Esmola da Cadeia, Roberto Mendes e uma jovem cantora paulista chamada Juliana Amaral.

NOITE PONTO SOM - Quando e como conheceu o sambista Roque e porquê de gravar um CD com músicas dele?

CLÉCIA QUEIROZ -
Estava buscando canções para o meu CD, que tivesse a ver com o samba de roda e, ao mesmo tempo, com o candomblé, pois, estava pesquisando a mistura de ritmos oriundos da tradição afro-brasileira com o samba. Daí ouvi uma canção linda no show de J. Velloso e ele me disse que era de Roque. Liguei, então, para Roque e pedi músicas. Ele me deu a princípio seis canções que não eram exatamente samba-de-roda. Pedi, então, mais algumas. Ele me deu mais onze. Apaixonei-me por todas e terminei decidindo fazer um CD inteiro com música dele.

NOITE PONTO SOM – Roque Ferreira é um compositor bastante requisitado no meio artístico...

CLÉCIA QUEIROZ -
Ele tem mais de 400 músicas gravadas por artistas como Zeca Pagodinho, Dudu Nobre, Martin’ália, Maria Bethânia, Alcione e não tem na sua própria terra o reconhecimento que merece. A partir do nosso CD, o Jornal A Tarde fez uma matéria de duas páginas inteiras com ele e o nome dele começou a circular mais. Algumas cantoras na Bahia e de fora do Estado já disseram que vão gravar CDs com músicas dele. A Maria Bethânia acaba de lançar um CD com algumas canções do Roque. Isso já é uma felicidade imensa que este trabalho me deu.

NOITE PONTO SOM – O CD conta com outras participações especiais?

CLÉCIA QUEIROZ -
O CD traz 11 faixas de canções de Roque Ferreira, e por isso o nome “Samba de Roque” – e duas faixas bônus: uma com um pout porri de samba-de-roda de domínio público e outra com um samba de Dona Dalva Damiana de Freitas, grande sambadeira e compositora de Cachoeira. Eu fiz uma canção com Roque, mas vai ter que ficar para o próximo CD, pois já havíamos terminado o disco quando ela aconteceu.

NOITE PONTO SOM - Os arranjos de Samba de Roque, além de muito bem trabalhado, percebe-se uma valorização no seu timbre vocal na interpretação das canções. Quem realizou a direção artística?

CLÉCIA QUEIROZ -
A direção artística é minha e de Vítor Queiroz meu sobrinho, meu grande colaborador, que é mestre e pesquisador do jongo e do samba. A direção musical é de Dudu Reis, mas o CD tem muito da minha concepção e os arranjos são meus, de Dudu, de Edú Nascimento, Keko Villarroel de todos os músicos que participaram do trabalho. Além do engenheiro de som André Rangel, que teve participação ativa no trabalho.

NOITE PONTO SOM – É um disco independente? Quanto tempo levou para ficar pronto?

CLÉCIA QUEIROZ -
Nós trabalhamos muito juntos, trocando idéias, ensaiando muito antes de entrar no estúdio mesmo porque o CD foi feito sem patrocínio e não podíamos perder tempo no estúdio. Na verdade, ele levou um ano e meio até ficar totalmente pronto, exatamente pela falta de recursos, uma vez que, gravar um CD independente é muito caro. Uma vez gravado, ainda em processo de mixagem e prensagem, começamos a trabalhá-lo em shows, e fizemos isso durante todo o verão de 2009. Finalmente fizemos um pré-lançamento no Projeto Música no Parque, e depois ocorreu o lançamento oficial para convidados na Sala do Coro, no Teatro Castro Alves, e para o público em geral no Teatro Acbeu em outubro. Agora estamos lançando-o em outros espaços e cidades da Bahia.

NOITE PONTO SOM - Em que estúdio o disco foi gravado?

CLÉCIA QUEIROZ -
No DuartEstúdio. Fomos os primeiros a inaugurar o estúdio.

NOITE PONTO SOM - O disco Samba de Roque têm um trabalho de encarte visual belíssimo. Como surgiu esse conceito?

CLÉCIA QUEIROZ -
O projeto gráfico é de Thiago Massaki, um estudante de Design Gráfico da Universidade Estadual da Bahia (Uneb). Foi seu primeiro trabalho e desenvolvi com ele o conceito e idéias. Thiago é um grande artista, sensível e muito aberto. Foi de fato um encontro maravilhoso entre nós.

NOITE PONTO SOM - Além de atentar para qualidade no canto das canções de forma delicada e afinada, é notório em seus shows o trabalho visual. Como é realizada a concepção de seus shows?

­CLÉCIA QUEIROZ -
Sou dançarina formada pela Ufba, atriz desde menina, cantora e mestre em Performance Arte pela Howard University (EUA), além de ter estudado Mímica Corporal Dramática por quatro anos. Então, como pode ver, sou uma pessoa da encenação. O figurino, o texto das canções e a performance corporal são tão importantes quanto a música. Trato cada canção como se fosse um texto de teatro e o figurino é idealizado por mim a partir do que descubro com a performance e, ao mesmo tempo, a performance vai se reafirmando e modificando a partir dele. Sempre foi assim nos meus trabalhos. No Samba de Roque, temos também a participação especial de duas dançarinas profissionais, além de onze crianças da Escola de Dança da Ufba, da qual sou coordenadora pedagógica. Criança é sempre um presente e esses meninos, dez garotas e um garoto, são bem especiais, sabem o que é dança popular e a realizam com muito profissionalismo.

NOITE PONTO SOM - Seu nome é visto em importantes festivais culturais em paises como Alemanha, Espanha e Estados Unidos. Quais as principais questões em tocar fora do Brasil?

CLÉCIA QUEIROZ -
O objetivo é divulgar nosso trabalho que fala muito da nossa terra, e das nossas raízes, portanto, divulgar nossa cultura. Fomos sempre muitíssimo bem recebidos. A dificuldade de não estarmos mais atuantes fora do país é porque as passagens aéreas para muitos músicos é item muito caro para o contratante. Se não fosse isso estaríamos muito mais presentes na Europa e nos Estados Unidos, pois convites não faltam.

NOITE PONTO SOM - Em sua opinião, quais são as mudanças mais substâncias musicalmente e culturalmente em seu trabalho após tocar fora do Brasil?

CLÉCIA QUEIROZ -
Tocar fora do país faz reafirmar nossas raízes, pois somos mais valorizados por ela lá do que aqui. A Bahia não costuma reconhecer seus próprios talentos, mas no exterior eles admiram e se encantam com nossa musicalidade e performance. Foi difícil voltar para a Bahia, pois, havia me tornado a cantora da embaixada do Brasil em Washington. Meu visto estava acabando e o cônsul queria me legalizar para que eu não voltasse. Mas eu tinha família aqui e não queria estar longe de minha terra pra sempre.

NOITE PONTO SOM - Nos seus shows a multiplicidade de pessoas notáveis do universo baiano são traços marcantes. De onde vem tanta criação?

CLÉCIA QUEIROZ -
A inspiração vem da minha história com o mundo de teatro, dança, performance. Sou uma curiosa da nossa gente, da nossa cultura. Desejo mostrar os personagens que habitam nossas ruas e que fazem à história do samba. Então, estudo e levo isso para o palco. Os turistas, daqui do país e de fora, amam isso. Tenho ouvido dos turistas nas apresentações que fazemos aqui em Salvador, as coisas mais lindas que já ouvi. As pessoas nos levam no coração. Fora do país é a mesma coisa. Fizemos shows em Vic, Barcelona, Frankfurt, Berlim, Los Angeles, Filadélfia, Washington... Nesta última fiz muitos shows.

NOITE PONTO SOM – Fora do país à platéia é formada mais por brasileiros ou estrangeiros?

CLÉCIA QUEIROZ -
A princípio, a platéia era formada basicamente por brasileiros, mas a partir do terceiro show, passamos a ter 80% de americanos. Os meus próprios professores na Howard University se encantavam com minha forma de cantar e mover em palco. E antes de eu voltar me disseram que eu havia mudado a concepção dos meus colegas de jazz. Pois, eles nunca usavam o corpo para cantar, e agora eles tentavam se expressar corporalmente a partir do contato comigo. Fiquei muito feliz com isso.

NOITE PONTO SOM - Apesar da democracia que a internet trouxe em termos de divulgação artística, em sua opinião, o que ainda falta para que o cenário baiano possa se fortalecer neste quesito?

CLÉCIA QUEIROZ -
Falta que mais pessoas tenham acesso a internet. Ainda não temos no Brasil um contato tão intenso de toda população com a rede, como acontece nos Estados Unidos, onde absolutamente tudo é feito através dela. Muitas pessoas aqui não têm computadores e precisam de dois ou três dias para se conectar. Acho que ainda vai demorar um tanto para que usemos mais intensamente a internet como ferramenta para acesso à cultura.

NOITE PONTO SOM - O samba é um gênero musical diferente do axé music. Na Bahia, atualmente, o axé music se fortaleceu de forma, digamos, imortal como o samba. Não fazendo comparações no quesito qualidade entre eles. Mas, como avalia o rumo do samba feito na Bahia, o que se preocupa com a fidelização a música e a poesia?

CLÉCIA QUEIROZ -
Apesar do samba-de-roda ser a raiz da música brasileira, ele não se firmou aqui como no Rio de Janeiro. De cinco anos para cá a gente passou a ver o samba mais presente em Salvador, e acho que nosso projeto Casa do Samba contribuiu bastante para isso, além da persistência de Edil Pacheco, Walmir Lima, os Irmãos Trabuco, Raymundo Sodré, Roberto Mendes e do pessoal do Recôncavo – Mestre Zeca Afonso do Samba Chula de São Braz, Zé de Lelinha, João do Boi, Dona Dalva Daminana de Freitas (Cachoeira)... Também o fato do samba-de-roda ter sido considerado Patrimônio Imaterial da Humanidade contribuiu para que novos cantores surgissem e agora estamos com bastante gente fazendo samba. Isso é ótimo! O samba tem que estar na sala de estar da nossa música e não apenas em guetos. Deve ser reconhecido como nossa mola mestra e raiz. Quanto à fidelização da música e da poesia, existe e sempre vai existir, música imediata, que vem e vai com a mesma força, e música que fica pra sempre. A maioria das emissoras de rádios têm assumido o papel de valorização do consumo imediato, o que é uma pena. Mas os bons compositores estão aí e cabe a nós cantores valorizá-los e trabalharmos junto com eles

NOITE PONTO SOM - Quais são seus projetos futuros, como cantora, compositora e atriz?

CLÉCIA QUEIROZ -
No momento estou cuidando da divulgação do meu novo CD, tanto aqui no estado da Bahia como fora dele. Pretendo levá-lo para o exterior também. Isso já é muito trabalho, uma vez que, sou uma artista independente. Como compositora sou muito preguiçosa. Só faço música quando tenho tempo ou necessidade para algum trabalho que pretendo fazer. Então deixo ela acontecer naturalmente. A atriz e a dançarina estão incorporadas no meu trabalho musical. Mas tenho saudade do teatro e espero fazer um musical em breve.

A cantora Clécia Queiroz recebeu as seguintes premiações:

Bolsa de Mestrado nos Estados Unidos - Concurso Nacional Programa Bolsa da Ford Foundation – 2003
Mensão Honrosa da Howard University – Uma dos cinco exemplos de toda Pós Graduação
Prêmio Copene de Cultura e Arte - Categoria Música - 2º. Semestre 1996
Troféu Caymmi Ano IX - indicação como melhor intérprete - Show "Blue Moon".
Troféu Bahia Aplaude - premiação como melhor atriz - Espetáculo de Imagens Musicais "Ade Até".
Troféu Bahia Aplaude - indicação como melhor atriz - 1º. Semestre de 1997 - Espetáculo Musical "Abismo de Rosas".
CD - Conspiração Baiana (Various Artists) - Tropical Music Records inc. publici.
CD - Chegar à Bahia- 1º. CD solo

Crédito das fotos – Rafael Martins

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Entrevista: recordação viva da cena punk baiana


Nos anos de 1960, Raulzito e os Panteras já faziam rock na soterópolis. Em 1970 apareceram bandas como Mar Revolto, Frutos da Vida, Nuvens Negra incendiando as noites na cidade com muito som punk. Já em 1980, a banda Camisa de Vênus, fez historia e se tornou referência para grupos baianos como Gonorréia, Espírito de Porco, Delirium Tremens, Arroto de Rato, Skarro, Abuso de Poder, Trem Fantasma. Nesta época, o cenário era abarrotado de punks, desfilando com seus topetes, jeans rasgados, correntes, coturnos e causando desconforto para os mais conservadores. Além disso, os pontos de encontro desses roqueiros eram desde uma praça fazendo um sonzinho aos mais inusitados como embaixo de viadutos da cidade. Entretanto, os dois circos que existiam naquela época e ficavam localizado na orla atlântica são as principais lembranças dessa geração: Troca de Segredos e o Relâmpago eram os seus nomes. Lá, aconteciam diversos shows tanto de bandas locais como de fora. Em entrevista, exclusiva ao blog NOITE PONTO SOM, Marcão Botelho, 42 anos, fala sobre sua carreira musical, shows, produtores e descreve fatos interessantes sobre os anos 80. Em paralelo a música, Marcão Botelho é professor de Literatura Brasileira, colecionador aficionado de discos de vinil e uma figura respeitável no cenário musical. Na efervescência do movimento punk baiano montou grupos importantes como: Os Porcos, Ofensa Social, Delirium Tremens. Não nessa mesma ordem, Botelho é baixista, guitarrista e vocalista, e suas palavras são um depoimento precioso de um período fértil da História do cenário punk baiano. Ele atualmente toca baixo na banda Coveiros do Cover que conta ainda em sua formação com lendários músicos do universo alternativo rock: Marcos Arapuka Clement (guitarra), Jerry Marlon (guitarra), Guiga Bluesrock (bateria) e David Coverdelle Roth (vocais e berros). Leia à entrevista abaixo.

NOITE PONTO SOM - Quando teve o primeiro contato com a música e quais grupos te influenciaram?

MARCÃO BOTELHO -
Bem, na infância, ouvi muito Roberto Carlos e Erasmo (ainda ouço hoje), por conta da fissura de minha mãe por esses caras. Até hoje sei de cor a ordem das músicas e as letras daqueles discos clássicos de Roberto e Erasmo. Ouvi muito Rita Lee e Tutti Frutti, principalmente Fruto Proibido, que é discoteca básica. Em 1979, um primo meu veio do interior para estudar em Salvador e foi morar em minha casa. Na bagagem, ele trouxe uma imensa coleção de Elvis Presley e me converteu. Até hoje tenho alguns vinis daquela época, tipo Aloha From Hawaii, que roubei do meu primo. Sempre que rolavam os filmes de Elvis e Roberto na Sessão da Tarde, eu inventava alguma doença para matar aula. Sem saber, contrai a fissura e a compulsão de colecionar discos e memorabilia do meu primo. Depois, por conta das festinhas que rolavam no bairro, a também aquelas novelas como Estúpido Cupido, Dance Days etc., descobri a disco music e a música black americana, principalmente a Motown, e me tornei um fanático pelos discos dos Jackson Five. Na época, rolava o desenho animado deles todas as tardes na TV. Eu morava no Jardim Cruzeiro e fiquei sabendo que, na Boa Viagem, havia um cara que tinha a coleção completa dos Jackson. Fui lá no queixão bater na porta dele, cujo nome não lembro mais, para gravar uns cassetes. O cara então queria vender um disco que havia ganhado de alguém, mas que não o interessava: Never Mind the Bolocks Heres The Sex Pistols. Consegui uma grana com meu tio e comprei o disco. A audição desse disco foi “mortal”, um divisor de águas na minha vida, fiquei siderado, foi o meu “romance de formação” e disco de cabeceira até conhecer The Clash. Logo, por conta do meu interesse por punk rock, fiquei sabendo do Rock Special, o programa emblemático que Marcelo Nova fazia na Rádio Aratu, e também o Sessão Maldita, de Gutembergue Cruz. Estes foram verdadeiras escolas de formação rocker, minhas faculdades de rock roll na modalidade EAD, kkkkkk. Não tocava instrumento algum (ainda não toco nada que preste hoje, apenas finjo que toco). A necessidade de tocar guitarra surgiu depois da descoberta do lema punk “do it yourself”, mas isso foi depois da cena instaurada pelo Camisa de Vênus, que deu o chute no formigueiro. Eu cheguei a tocar guitarra em algumas bandas, como Ofensa Social e Delirium Tremens, mas era uma merda que dava para o gasto. Quem me mandou tocar baixo foi Cláudio Lacerda, quando formamos os CDFS. Mas apenas por falta de um baixista. Jerry Marlon me deu umas aulas, que duram até os dias atuais, estilo “cabeça-de-nota-e-condução”, kkkkkk.

NOITE PONTO SOM - Como surgiu de montar a primeira banda e onde rolou o primeiro show?

MARCÃO BOTELHO -
Primeiro Os Porcos, depois Ofensa Social, que tinha Jerry Marlon no baixo, eu e Jorginho Page nas guitarras, Killer Band na bateria e Luciano Grey nos vocais. A nossa estréia foi na festa de aniversário de Jerry, na sala da casa dos pais dele, em São Gonçalo. Foi um horror para os convidados, que saíram de mansinho, mas uma honra para banda por ter criado um mal-estar terrível, kkkkk. Tocávamos umas três ou quatro música nossas (o “hit” era A saída é a anarquia) e o resto era cover do Camisa, a nossa matriz, kkkkkk. Depois Cláudio Lacerda chamou a gente para tocar no Instituto Feminino (sic), mas agora com ele na guitarra e eu virei “cantor”. Aí nos tornamos os CDFS por conta da ocasião, né? Esse show entrou para as histórias lendárias do rock roll em SSA, por conta de uma treta que rolou com uma banda de axé music, de outros estudantes, que iria tocar depois da gente. Os caras levaram uma turma barra pesada dos Barris e aí rolou um briga imensa, correria pelas escadas, gente pulando os muros, espancamentos, gritaria. Dizem, não sei, que foi por minha causa, simplesmente porque quando vi os caras afinando uma guitarra baiana, símbolo máximo do que mais odiávamos, mandei os “axés” se fuderem e declarei guerra aberta “à música de carnaval”, como dizíamos na época. Eu escapei da surra por pouco, entrando em um ônibus que passou na hora H. O chato é que já tínhamos planejado roubar a guitarra stratocaster Giannini da escola, que já estava escondida em algum lugar. Mas veio a confusão e tivemos que fugir, kkkkkk. Fiquei proscrito e proibido de andar nos Barris por um bom tempo. Quando fomos devolver a bateria a Hélio Rocha, que morava nos Barris, roubamos o revólver 38 do pai de Jorginho e fomos armados. Quem conseguiu e negociou minha liberdade condicional foi Hélio Rocha, que morava no bairro, era meu amigo e conhecia a turma de lá. Ele então convidou a mim e a Jerry para entrarmos no Delirium Tremens.

NOITE PONTO SOM - Como era fazer rock punk soteropolitano na década 80? Onde aconteciam os shows e que casas noturnas eram o ponto de encontro da galera rock, dessa época?

MARCÃO BOTELHO -
Na verdade, era como disputar uma corrida de cavalos montados em um jegue manco. E eu não quero com isso “auratizar” a nossa cena, como se fôssemos heróis injustiçados crônicos e pobres coitados excluídos. Era a opção implícita estar à margem, criar conflitos, ir de encontro ao consenso, como era típico do niilismo, podemos dizer, punk. Embora quiséssemos também cavar tocas no, digamos, mainstream. Mas Salvador era ainda mais acanhada do que é hoje, mais isolada das “capitais”, e ainda aquela “utopia de lugar”, a terra da harmonia dos contrários, a pequena cidade grande, capital e província, mais colonial que industrial... O Camisa tocou em lugares sem uma relação com o rock, tipo Casa dos Festejos e New Fred’s, que eram espaços para serestas ou grupos folclóricos etc. Mas aí sugiram os circos Relâmpago e Troca de Segredos, onde rolaram grandes shows que juntaram o público ouvinte do Rock Special. Nós ainda não avaliamos a importância do radio e do programa de Marcelo como catalisadores dessa cena. Quem era o público dos primeiros shows do Camisa? Os ouvintes do Rock Special, basicamente. Eu conheci todos os meus parceiros a partir daí, nos shows do Camisa, que foi um fenômeno quase imediato de público desde os primeiros shows. O público ouvinte que estava ligado em rede pelo rádio e era virtual se encontrou nas portas dos shows e daí surgiram outras bandas. Como os shows do Camisa eram experiências de choque extremas, a cena se desdobrou muito rapidamente. Na verdade, o Camisa, para o bem ou para o mau, quer a gente queria ou não, abriu uma ferida narcísica naquela forma de pensar e inventar a identidade na Bahia, a chamada baianidade. Era uma ruptura, com a qual os jovens que ouviam as informações mais recentes do rock, principalmente o punk e pós-punk, se identificaram de imediato, porque não tinham grande interesse em Tropicália, Novos Baianos, Clube da Esquina, A Cor do Sono etc., pois não tinham experimentado o momento heróico dessas gerações que vieram antes. Ou seja, o que era ruptura nos 60 e 70, já havia se tornado “tradição” no início dos 80. A exceção, graças a Marcelo, era Raul, é claro.

NOITE PONTO SOM - Com relação a equipamentos de sons, tinha alguém que ficava na “responsa” de equalizar o som dos shows ou eram vocês mesmos? Como acontecia esse esquema?

MARCÃO BOTELHO –
Som com estrutura profissional, naquele momento, que eu lembre, só João Américo Sonorizações, que era o sonho de consumo das bandas. Depois Macedo Marques e Waltinho Seixas abriram a Natura Som e Luz, que praticamente patrocinou e apoiou vários shows, inclusive do Ramal 12. Nicolau Rios, do Trem Fantasma, também foi importante pra caralho e devemos muito a ele, pois, além de mixar vários shows, às vezes com uma concepção sonora, digamos, bem psicodélica, foi o grande agitador, na produção, daquela cena, organizando muitos festivais, fazendo as fotos de divulgação, correndo a cidade naquela Brasília vermelha caindo aos pedaços, que, por sinal, virou um ícone do rock roll local, inclusive por aparecer nos cartazes, principalmente os paralamas carcomidos pela ferrugem... Lembra do carro do Detetive Muttley? Pois é, perde para a Brasília de Nicolau.

NOITE PONTO SOM - De que forma as bandas ganhavam público?

MARCÃO BOTELHO -
Cara, era mais no boca-a-boca mesmo, pois quase todo mundo se conhecia dos shows do Camisa, e o público das bandas eram as próprias bandas e os amigos das bandas, basicamente. Cartazes, filipetas e os impagáveis big hands de Joelino, que fazia quase de graça. Pichações nos muros rolavam muito também e eram “um meio de comunicação” que achávamos eficaz.

NOITE PONTO SOM - A mídia divulga os eventos?

MARCÃO BOTELHO -
Às vezes, rolavam umas notinhas nos jornais, sobretudo na Tribuna e Jornal da Bahia, que davam mais espaço para as bandas. Marcelo também mandava uns recados via rádio.

NOITE PONTO SOM - Os CDFS no Circo Relâmpago em 1984: cena rocker punk. Como avalia o cenário atual em relação há aquele período?

MARCÃO BOTELHO –
Bem, houve um momento, logo após a ida do Camisa para o sul, em que se esboçou um “movimento punk” em torno das bandas, embora muitas delas não tivessem qualquer envolvimento programático com movimentos. Como dizíamos na época, só acreditávamos no movimento pélvico e das ondas. Mas, por conta das referências sonoras que Os CDFS tinham, U.K. Subs, Cockney Rejects, Stiff Little Fingers, MC5, Tom Robinson Band (esta era uma obsessão minha e do guitarrista Cláudio Lacerda) e, principalmente, depois que inventaram (eu juro que não fui eu, ao contrário do que dizem) um significado oculto para a sigla CDFS, Camadas Dos Fodidos Sociais, muito embora fôssemos uma Cambada De Fodidos Sociopatas, muita gente da periferia de Salvador, identificada com o punk, aparecia nos shows. Lembre-se que éramos todos da perifa, Jardim Cruzeiro, São Gonçalo, Pernambués, Beiru etc. e aí os amigos do bairro davam uma força e formavam um pequeno público. Aquele show no Relâmpago foi produzido por Nicolau Rios, é claro.

NOITE PONTO SOM - O excesso de violência durante os shows foi um dos entraves para o fortalecimento da cena punk baiana na década de 80? Recorda-se de algum conflito grave?

MARCÃO BOTELHO –
Cara, têm umas cabeludas, como aquela em que um cara cuspiu em Gustavo (guitarrista do Camisa) e este chutou a boca do sujeito. Porém, a mais engraçada foi no Festival da Band, no Troca de Segredos e no Relâmpago, quando um monte de parasitas apareceu por lá e tentou tocar. O público não comeu nada, né? Cid Guerreiro, então Cid Pororoca, chegou com um figurino que misturava Poderosa Ísis com Rodaque e levou várias correntadas nas sapatilhas cheias de lantejoula. A vocalista da Abuso de Poder ficou com um pé preso nas mãos de uns punks na frente do palco. Eduardo Scott sugeriu “sem maldade” a Conde Espinheira, baterista da Velorium, uma banda de hardcore, como “seria legal puxar uma levada de blues no meio do hardcore”. E o cara fez isso! Rolou uma treta séria e a banda, acho, acabou ali no palco mesmo. Eu, sinceramente, gostava desses conflitos, embora fosse frouxo o suficiente para não participar deles. Vi tanta história que não dá pra contar aqui.

NOITE PONTO SOM - Rolava rivalidade entre as bandas no sentido de algumas tocarem em certos locais enquanto outras não?

MARCÃO BOTELHO –
Rolava, é claro. Os caras das bandas eram os mais cruéis críticos de outras bandas, porque eram o primeiro o público e o primeiro algoz. Rolava ciumeira, alguns eram mais ortodoxos em suas preferências sonoras, outros mais “ecléticos”, uns se vestiam de uma forma, outros de outra, coisas típicas de subculturas tribais em ambientes urbanos.

NOITE PONTO SOM – Quais diferenças houve em relação a festivais de música punk da década de 80 para agora?

MARCÃO BOTELHO –
Não sei, cara. O punk se desdobrou em um monte de coisa, né? Ficou dogmático em alguns casos, arrumadinho em outros, mas a base do gênero ainda está ativa. É por isso que eu ainda posso tocar. Mas eu perdi o contato com a cena, com os festivais.

NOITE PONTO SOM - Com relação à banda, porque os Coveiros do Cover resolveram retornar?

MARCÃO BOTELHO -
Somos amigos há quase trinta anos. Em um churrasco na casa de David Roth, após analisar o desenvolvimento avassalador de nossas barrigas, lancei um desafio: que tal batermos um baba nos fins de semana? E David ponderou e respondeu: que tal a gente se reunir, não em um campo, mas em um estúdio e tocar de brincadeira apenas canções do The Clash, nossa banda predileta? É claro que a proposta dele foi aceita. Ainda bem. O baixista Jerry Marlon (nosso guitarrista), que é músico profissional, marcou uma pauta em um estúdio, que é nossa casa hoje, o Zion Flag, de Conrado. Nos ensaios, tomamos gosto e “fundamos” o Zé Clash. Depois Jerry gostou da onda e propôs que fizéssemos um show. Ensaiamos outras coisas que adoramos também, principalmente The Who e Sex Pistols. Aí alguém sugeriu tocarmos as nossas músicas dos anos 80, Espírito de Porco, Ramal, 14º Andar. E aí foi. Nosso primeiro show aconteceu em 25 de julho deste ano, no Farol Music Bar, no Rio Vermelho, em Salvador, com um público que sinceramente não esperávamos, mais de 200 pessoas. Foi mais uma festa e não tinha nada de Ploc. Vamos tocar pela primeira vez em Camaçari, no sábado 7 de novembro. Depois fazemos outro show em Salvador, na sexta-feira 13 de novembro, na segunda festa Troca de Segredos, no Groove Bar (Barra). Estamos na maior expectativa com o show de Camaçari. Por ser uma cidade próxima ao Pólo Petroquímico, a Detroit baiana, kkkkk, onde residem pessoas ligadas à vida industrial, acho que a cidade tem um público de rock grande e que haverá afinidade com o nosso tipo de som.

NOITE PONTO SOM - Clássicos do punk (Ramones, Sex Pistols, The Clash) e mais canções que fizeram a trilha dos anos 1980 (Talking Heads, The Jam, Bowie...) estão no repertório. Mas os Coveiros têm a pretensão de gravar algum trabalho autoral dentro dessa proposta?

MARCÃO BOTELHO –
Boa pergunta... Ainda não discutimos isso na banda. O projeto inicial é tirar do baú o repertório que compusemos nos anos 1980, composições de outras bandas da cena local da época e as coisas que a gente gostava de ouvir. A banda vem se dedicando a essa proposta de memória dos anos 80, por enquanto. Acho que ainda temos muito o que fazer nesse sentido. Nosso guitarrista, Marcos Clement, já falou na possibilidade de novas composições. Quem sabe mais adiante... Ou talvez podemos voltar à ideia original e bater um baba.

NOITE PONTO SOM – Atualmente, como você avalia a cena punk baiana?

MARCÃO –
Cara, eu não saio muito de casa, fico à noite ouvindo música, vendo filmes, limpando os vinis, lendo. Não durmo cedo, sou um notívago nato, mas não freqüento muito os shows das bandas, embora ouça as músicas, compre os discos. Gosto do som de Messias, do Retrofoguetes, do Theatro de Serafim e ouço até hoje o disco Heartfelt Sessions, do Deadbillies, que eu considero “um clássico”.

NOITE PONTO SOM - Quais são os próximos projetos dos Coveiros do Cover?

MARCÃO BOTELHO –
A vantagem de ser “veterano” no rock é que a gente faz as coisas sem ansiedade, tudo no seu tempo para que o resultado seja de boa qualidade. Também tem o fato de todo mundo ter atividades paralelas. Pretendemos continuar divulgando informações sobre a cena rocker baiana dos anos 80 tanto nos eventos como no blog da banda um espaço que tem gerado debates interessantes.

Mais informações:

As fotos no estúdio de parede azul são de Fábio Marconi.
Foto 1 - Jerry, David, Marcão.
Foto 2 - Jerry, Marcão.
Foto 3 - Banda - Coveiros do Cover
Foto 4 - CDFs - 1984
Foto 5 - Ofensa Social - 1982
Foto 6 - Claúdio Lacerda- Banda Ramal 12
Foto 7 - Foto em PB – Banda Ramal 12 – crédito Hamiltom Pena.
Foto 8 - Banda Delirium Tremens

Blog - www.coveirosdocover.blogspot.com