Nos anos de 1960, Raulzito e os Panteras já faziam rock na soterópolis. Em 1970 apareceram bandas como Mar Revolto, Frutos da Vida, Nuvens Negra incendiando as noites na cidade com muito som punk. Já em 1980, a banda Camisa de Vênus, fez historia e se tornou referência para grupos baianos como Gonorréia, Espírito de Porco, Delirium Tremens, Arroto de Rato, Skarro, Abuso de Poder, Trem Fantasma. Nesta época, o cenário era abarrotado de punks, desfilando com seus topetes, jeans rasgados, correntes, coturnos e causando desconforto para os mais conservadores. Além disso, os pontos de encontro desses roqueiros eram desde uma praça fazendo um sonzinho aos mais inusitados como embaixo de viadutos da cidade. Entretanto, os dois circos que existiam naquela época e ficavam localizado na orla atlântica são as principais lembranças dessa geração: Troca de Segredos e o Relâmpago eram os seus nomes. Lá, aconteciam diversos shows tanto de bandas locais como de fora. Em entrevista, exclusiva ao blog NOITE PONTO SOM, Marcão Botelho, 42 anos, fala sobre sua carreira musical, shows, produtores e descreve fatos interessantes sobre os anos 80. Em paralelo a música, Marcão Botelho é professor de Literatura Brasileira, colecionador aficionado de discos de vinil e uma figura respeitável no cenário musical. Na efervescência do movimento punk baiano montou grupos importantes como: Os Porcos, Ofensa Social, Delirium Tremens. Não nessa mesma ordem, Botelho é baixista, guitarrista e vocalista, e suas palavras são um depoimento precioso de um período fértil da História do cenário punk baiano. Ele atualmente toca baixo na banda Coveiros do Cover que conta ainda em sua formação com lendários músicos do universo alternativo rock: Marcos Arapuka Clement (guitarra), Jerry Marlon (guitarra), Guiga Bluesrock (bateria) e David Coverdelle Roth (vocais e berros). Leia à entrevista abaixo.
NOITE PONTO SOM - Quando teve o primeiro contato com a música e quais grupos te influenciaram?
MARCÃO BOTELHO - Bem, na infância, ouvi muito Roberto Carlos e Erasmo (ainda ouço hoje), por conta da fissura de minha mãe por esses caras. Até hoje sei de cor a ordem das músicas e as letras daqueles discos clássicos de Roberto e Erasmo. Ouvi muito Rita Lee e Tutti Frutti, principalmente Fruto Proibido, que é discoteca básica. Em 1979, um primo meu veio do interior para estudar em Salvador e foi morar em minha casa. Na bagagem, ele trouxe uma imensa coleção de Elvis Presley e me converteu. Até hoje tenho alguns vinis daquela época, tipo Aloha From Hawaii, que roubei do meu primo. Sempre que rolavam os filmes de Elvis e Roberto na Sessão da Tarde, eu inventava alguma doença para matar aula. Sem saber, contrai a fissura e a compulsão de colecionar discos e memorabilia do meu primo. Depois, por conta das festinhas que rolavam no bairro, a também aquelas novelas como Estúpido Cupido, Dance Days etc., descobri a disco music e a música black americana, principalmente a Motown, e me tornei um fanático pelos discos dos Jackson Five. Na época, rolava o desenho animado deles todas as tardes na TV. Eu morava no Jardim Cruzeiro e fiquei sabendo que, na Boa Viagem, havia um cara que tinha a coleção completa dos Jackson. Fui lá no queixão bater na porta dele, cujo nome não lembro mais, para gravar uns cassetes. O cara então queria vender um disco que havia ganhado de alguém, mas que não o interessava: Never Mind the Bolocks Heres The Sex Pistols. Consegui uma grana com meu tio e comprei o disco. A audição desse disco foi “mortal”, um divisor de águas na minha vida, fiquei siderado, foi o meu “romance de formação” e disco de cabeceira até conhecer The Clash. Logo, por conta do meu interesse por punk rock, fiquei sabendo do Rock Special, o programa emblemático que Marcelo Nova fazia na Rádio Aratu, e também o Sessão Maldita, de Gutembergue Cruz. Estes foram verdadeiras escolas de formação rocker, minhas faculdades de rock roll na modalidade EAD, kkkkkk. Não tocava instrumento algum (ainda não toco nada que preste hoje, apenas finjo que toco). A necessidade de tocar guitarra surgiu depois da descoberta do lema punk “do it yourself”, mas isso foi depois da cena instaurada pelo Camisa de Vênus, que deu o chute no formigueiro. Eu cheguei a tocar guitarra em algumas bandas, como Ofensa Social e Delirium Tremens, mas era uma merda que dava para o gasto. Quem me mandou tocar baixo foi Cláudio Lacerda, quando formamos os CDFS. Mas apenas por falta de um baixista. Jerry Marlon me deu umas aulas, que duram até os dias atuais, estilo “cabeça-de-nota-e-condução”, kkkkkk.
NOITE PONTO SOM - Como surgiu de montar a primeira banda e onde rolou o primeiro show?
MARCÃO BOTELHO - Primeiro Os Porcos, depois Ofensa Social, que tinha Jerry Marlon no baixo, eu e Jorginho Page nas guitarras, Killer Band na bateria e Luciano Grey nos vocais. A nossa estréia foi na festa de aniversário de Jerry, na sala da casa dos pais dele, em São Gonçalo. Foi um horror para os convidados, que saíram de mansinho, mas uma honra para banda por ter criado um mal-estar terrível, kkkkk. Tocávamos umas três ou quatro música nossas (o “hit” era A saída é a anarquia) e o resto era cover do Camisa, a nossa matriz, kkkkkk. Depois Cláudio Lacerda chamou a gente para tocar no Instituto Feminino (sic), mas agora com ele na guitarra e eu virei “cantor”. Aí nos tornamos os CDFS por conta da ocasião, né? Esse show entrou para as histórias lendárias do rock roll em SSA, por conta de uma treta que rolou com uma banda de axé music, de outros estudantes, que iria tocar depois da gente. Os caras levaram uma turma barra pesada dos Barris e aí rolou um briga imensa, correria pelas escadas, gente pulando os muros, espancamentos, gritaria. Dizem, não sei, que foi por minha causa, simplesmente porque quando vi os caras afinando uma guitarra baiana, símbolo máximo do que mais odiávamos, mandei os “axés” se fuderem e declarei guerra aberta “à música de carnaval”, como dizíamos na época. Eu escapei da surra por pouco, entrando em um ônibus que passou na hora H. O chato é que já tínhamos planejado roubar a guitarra stratocaster Giannini da escola, que já estava escondida em algum lugar. Mas veio a confusão e tivemos que fugir, kkkkkk. Fiquei proscrito e proibido de andar nos Barris por um bom tempo. Quando fomos devolver a bateria a Hélio Rocha, que morava nos Barris, roubamos o revólver 38 do pai de Jorginho e fomos armados. Quem conseguiu e negociou minha liberdade condicional foi Hélio Rocha, que morava no bairro, era meu amigo e conhecia a turma de lá. Ele então convidou a mim e a Jerry para entrarmos no Delirium Tremens.
NOITE PONTO SOM - Como era fazer rock punk soteropolitano na década 80? Onde aconteciam os shows e que casas noturnas eram o ponto de encontro da galera rock, dessa época?
MARCÃO BOTELHO - Na verdade, era como disputar uma corrida de cavalos montados em um jegue manco. E eu não quero com isso “auratizar” a nossa cena, como se fôssemos heróis injustiçados crônicos e pobres coitados excluídos. Era a opção implícita estar à margem, criar conflitos, ir de encontro ao consenso, como era típico do niilismo, podemos dizer, punk. Embora quiséssemos também cavar tocas no, digamos, mainstream. Mas Salvador era ainda mais acanhada do que é hoje, mais isolada das “capitais”, e ainda aquela “utopia de lugar”, a terra da harmonia dos contrários, a pequena cidade grande, capital e província, mais colonial que industrial... O Camisa tocou em lugares sem uma relação com o rock, tipo Casa dos Festejos e New Fred’s, que eram espaços para serestas ou grupos folclóricos etc. Mas aí sugiram os circos Relâmpago e Troca de Segredos, onde rolaram grandes shows que juntaram o público ouvinte do Rock Special. Nós ainda não avaliamos a importância do radio e do programa de Marcelo como catalisadores dessa cena. Quem era o público dos primeiros shows do Camisa? Os ouvintes do Rock Special, basicamente. Eu conheci todos os meus parceiros a partir daí, nos shows do Camisa, que foi um fenômeno quase imediato de público desde os primeiros shows. O público ouvinte que estava ligado em rede pelo rádio e era virtual se encontrou nas portas dos shows e daí surgiram outras bandas. Como os shows do Camisa eram experiências de choque extremas, a cena se desdobrou muito rapidamente. Na verdade, o Camisa, para o bem ou para o mau, quer a gente queria ou não, abriu uma ferida narcísica naquela forma de pensar e inventar a identidade na Bahia, a chamada baianidade. Era uma ruptura, com a qual os jovens que ouviam as informações mais recentes do rock, principalmente o punk e pós-punk, se identificaram de imediato, porque não tinham grande interesse em Tropicália, Novos Baianos, Clube da Esquina, A Cor do Sono etc., pois não tinham experimentado o momento heróico dessas gerações que vieram antes. Ou seja, o que era ruptura nos 60 e 70, já havia se tornado “tradição” no início dos 80. A exceção, graças a Marcelo, era Raul, é claro.
NOITE PONTO SOM - Com relação a equipamentos de sons, tinha alguém que ficava na “responsa” de equalizar o som dos shows ou eram vocês mesmos? Como acontecia esse esquema?
MARCÃO BOTELHO – Som com estrutura profissional, naquele momento, que eu lembre, só João Américo Sonorizações, que era o sonho de consumo das bandas. Depois Macedo Marques e Waltinho Seixas abriram a Natura Som e Luz, que praticamente patrocinou e apoiou vários shows, inclusive do Ramal 12. Nicolau Rios, do Trem Fantasma, também foi importante pra caralho e devemos muito a ele, pois, além de mixar vários shows, às vezes com uma concepção sonora, digamos, bem psicodélica, foi o grande agitador, na produção, daquela cena, organizando muitos festivais, fazendo as fotos de divulgação, correndo a cidade naquela Brasília vermelha caindo aos pedaços, que, por sinal, virou um ícone do rock roll local, inclusive por aparecer nos cartazes, principalmente os paralamas carcomidos pela ferrugem... Lembra do carro do Detetive Muttley? Pois é, perde para a Brasília de Nicolau.
NOITE PONTO SOM - De que forma as bandas ganhavam público?
MARCÃO BOTELHO - Cara, era mais no boca-a-boca mesmo, pois quase todo mundo se conhecia dos shows do Camisa, e o público das bandas eram as próprias bandas e os amigos das bandas, basicamente. Cartazes, filipetas e os impagáveis big hands de Joelino, que fazia quase de graça. Pichações nos muros rolavam muito também e eram “um meio de comunicação” que achávamos eficaz.
NOITE PONTO SOM - A mídia divulga os eventos?
MARCÃO BOTELHO - Às vezes, rolavam umas notinhas nos jornais, sobretudo na Tribuna e Jornal da Bahia, que davam mais espaço para as bandas. Marcelo também mandava uns recados via rádio.
NOITE PONTO SOM - Os CDFS no Circo Relâmpago em 1984: cena rocker punk. Como avalia o cenário atual em relação há aquele período?
MARCÃO BOTELHO – Bem, houve um momento, logo após a ida do Camisa para o sul, em que se esboçou um “movimento punk” em torno das bandas, embora muitas delas não tivessem qualquer envolvimento programático com movimentos. Como dizíamos na época, só acreditávamos no movimento pélvico e das ondas. Mas, por conta das referências sonoras que Os CDFS tinham, U.K. Subs, Cockney Rejects, Stiff Little Fingers, MC5, Tom Robinson Band (esta era uma obsessão minha e do guitarrista Cláudio Lacerda) e, principalmente, depois que inventaram (eu juro que não fui eu, ao contrário do que dizem) um significado oculto para a sigla CDFS, Camadas Dos Fodidos Sociais, muito embora fôssemos uma Cambada De Fodidos Sociopatas, muita gente da periferia de Salvador, identificada com o punk, aparecia nos shows. Lembre-se que éramos todos da perifa, Jardim Cruzeiro, São Gonçalo, Pernambués, Beiru etc. e aí os amigos do bairro davam uma força e formavam um pequeno público. Aquele show no Relâmpago foi produzido por Nicolau Rios, é claro.
NOITE PONTO SOM - O excesso de violência durante os shows foi um dos entraves para o fortalecimento da cena punk baiana na década de 80? Recorda-se de algum conflito grave?
MARCÃO BOTELHO – Cara, têm umas cabeludas, como aquela em que um cara cuspiu em Gustavo (guitarrista do Camisa) e este chutou a boca do sujeito. Porém, a mais engraçada foi no Festival da Band, no Troca de Segredos e no Relâmpago, quando um monte de parasitas apareceu por lá e tentou tocar. O público não comeu nada, né? Cid Guerreiro, então Cid Pororoca, chegou com um figurino que misturava Poderosa Ísis com Rodaque e levou várias correntadas nas sapatilhas cheias de lantejoula. A vocalista da Abuso de Poder ficou com um pé preso nas mãos de uns punks na frente do palco. Eduardo Scott sugeriu “sem maldade” a Conde Espinheira, baterista da Velorium, uma banda de hardcore, como “seria legal puxar uma levada de blues no meio do hardcore”. E o cara fez isso! Rolou uma treta séria e a banda, acho, acabou ali no palco mesmo. Eu, sinceramente, gostava desses conflitos, embora fosse frouxo o suficiente para não participar deles. Vi tanta história que não dá pra contar aqui.
NOITE PONTO SOM - Rolava rivalidade entre as bandas no sentido de algumas tocarem em certos locais enquanto outras não?
MARCÃO BOTELHO – Rolava, é claro. Os caras das bandas eram os mais cruéis críticos de outras bandas, porque eram o primeiro o público e o primeiro algoz. Rolava ciumeira, alguns eram mais ortodoxos em suas preferências sonoras, outros mais “ecléticos”, uns se vestiam de uma forma, outros de outra, coisas típicas de subculturas tribais em ambientes urbanos.
NOITE PONTO SOM – Quais diferenças houve em relação a festivais de música punk da década de 80 para agora?
MARCÃO BOTELHO – Não sei, cara. O punk se desdobrou em um monte de coisa, né? Ficou dogmático em alguns casos, arrumadinho em outros, mas a base do gênero ainda está ativa. É por isso que eu ainda posso tocar. Mas eu perdi o contato com a cena, com os festivais.
NOITE PONTO SOM - Com relação à banda, porque os Coveiros do Cover resolveram retornar?
MARCÃO BOTELHO - Somos amigos há quase trinta anos. Em um churrasco na casa de David Roth, após analisar o desenvolvimento avassalador de nossas barrigas, lancei um desafio: que tal batermos um baba nos fins de semana? E David ponderou e respondeu: que tal a gente se reunir, não em um campo, mas em um estúdio e tocar de brincadeira apenas canções do The Clash, nossa banda predileta? É claro que a proposta dele foi aceita. Ainda bem. O baixista Jerry Marlon (nosso guitarrista), que é músico profissional, marcou uma pauta em um estúdio, que é nossa casa hoje, o Zion Flag, de Conrado. Nos ensaios, tomamos gosto e “fundamos” o Zé Clash. Depois Jerry gostou da onda e propôs que fizéssemos um show. Ensaiamos outras coisas que adoramos também, principalmente The Who e Sex Pistols. Aí alguém sugeriu tocarmos as nossas músicas dos anos 80, Espírito de Porco, Ramal, 14º Andar. E aí foi. Nosso primeiro show aconteceu em 25 de julho deste ano, no Farol Music Bar, no Rio Vermelho, em Salvador, com um público que sinceramente não esperávamos, mais de 200 pessoas. Foi mais uma festa e não tinha nada de Ploc. Vamos tocar pela primeira vez em Camaçari, no sábado 7 de novembro. Depois fazemos outro show em Salvador, na sexta-feira 13 de novembro, na segunda festa Troca de Segredos, no Groove Bar (Barra). Estamos na maior expectativa com o show de Camaçari. Por ser uma cidade próxima ao Pólo Petroquímico, a Detroit baiana, kkkkk, onde residem pessoas ligadas à vida industrial, acho que a cidade tem um público de rock grande e que haverá afinidade com o nosso tipo de som.
NOITE PONTO SOM - Clássicos do punk (Ramones, Sex Pistols, The Clash) e mais canções que fizeram a trilha dos anos 1980 (Talking Heads, The Jam, Bowie...) estão no repertório. Mas os Coveiros têm a pretensão de gravar algum trabalho autoral dentro dessa proposta?
MARCÃO BOTELHO – Boa pergunta... Ainda não discutimos isso na banda. O projeto inicial é tirar do baú o repertório que compusemos nos anos 1980, composições de outras bandas da cena local da época e as coisas que a gente gostava de ouvir. A banda vem se dedicando a essa proposta de memória dos anos 80, por enquanto. Acho que ainda temos muito o que fazer nesse sentido. Nosso guitarrista, Marcos Clement, já falou na possibilidade de novas composições. Quem sabe mais adiante... Ou talvez podemos voltar à ideia original e bater um baba.
NOITE PONTO SOM – Atualmente, como você avalia a cena punk baiana?
MARCÃO – Cara, eu não saio muito de casa, fico à noite ouvindo música, vendo filmes, limpando os vinis, lendo. Não durmo cedo, sou um notívago nato, mas não freqüento muito os shows das bandas, embora ouça as músicas, compre os discos. Gosto do som de Messias, do Retrofoguetes, do Theatro de Serafim e ouço até hoje o disco Heartfelt Sessions, do Deadbillies, que eu considero “um clássico”.
NOITE PONTO SOM - Quais são os próximos projetos dos Coveiros do Cover?
MARCÃO BOTELHO – A vantagem de ser “veterano” no rock é que a gente faz as coisas sem ansiedade, tudo no seu tempo para que o resultado seja de boa qualidade. Também tem o fato de todo mundo ter atividades paralelas. Pretendemos continuar divulgando informações sobre a cena rocker baiana dos anos 80 tanto nos eventos como no blog da banda um espaço que tem gerado debates interessantes.
Mais informações:
NOITE PONTO SOM - Quando teve o primeiro contato com a música e quais grupos te influenciaram?
MARCÃO BOTELHO - Bem, na infância, ouvi muito Roberto Carlos e Erasmo (ainda ouço hoje), por conta da fissura de minha mãe por esses caras. Até hoje sei de cor a ordem das músicas e as letras daqueles discos clássicos de Roberto e Erasmo. Ouvi muito Rita Lee e Tutti Frutti, principalmente Fruto Proibido, que é discoteca básica. Em 1979, um primo meu veio do interior para estudar em Salvador e foi morar em minha casa. Na bagagem, ele trouxe uma imensa coleção de Elvis Presley e me converteu. Até hoje tenho alguns vinis daquela época, tipo Aloha From Hawaii, que roubei do meu primo. Sempre que rolavam os filmes de Elvis e Roberto na Sessão da Tarde, eu inventava alguma doença para matar aula. Sem saber, contrai a fissura e a compulsão de colecionar discos e memorabilia do meu primo. Depois, por conta das festinhas que rolavam no bairro, a também aquelas novelas como Estúpido Cupido, Dance Days etc., descobri a disco music e a música black americana, principalmente a Motown, e me tornei um fanático pelos discos dos Jackson Five. Na época, rolava o desenho animado deles todas as tardes na TV. Eu morava no Jardim Cruzeiro e fiquei sabendo que, na Boa Viagem, havia um cara que tinha a coleção completa dos Jackson. Fui lá no queixão bater na porta dele, cujo nome não lembro mais, para gravar uns cassetes. O cara então queria vender um disco que havia ganhado de alguém, mas que não o interessava: Never Mind the Bolocks Heres The Sex Pistols. Consegui uma grana com meu tio e comprei o disco. A audição desse disco foi “mortal”, um divisor de águas na minha vida, fiquei siderado, foi o meu “romance de formação” e disco de cabeceira até conhecer The Clash. Logo, por conta do meu interesse por punk rock, fiquei sabendo do Rock Special, o programa emblemático que Marcelo Nova fazia na Rádio Aratu, e também o Sessão Maldita, de Gutembergue Cruz. Estes foram verdadeiras escolas de formação rocker, minhas faculdades de rock roll na modalidade EAD, kkkkkk. Não tocava instrumento algum (ainda não toco nada que preste hoje, apenas finjo que toco). A necessidade de tocar guitarra surgiu depois da descoberta do lema punk “do it yourself”, mas isso foi depois da cena instaurada pelo Camisa de Vênus, que deu o chute no formigueiro. Eu cheguei a tocar guitarra em algumas bandas, como Ofensa Social e Delirium Tremens, mas era uma merda que dava para o gasto. Quem me mandou tocar baixo foi Cláudio Lacerda, quando formamos os CDFS. Mas apenas por falta de um baixista. Jerry Marlon me deu umas aulas, que duram até os dias atuais, estilo “cabeça-de-nota-e-condução”, kkkkkk.
NOITE PONTO SOM - Como surgiu de montar a primeira banda e onde rolou o primeiro show?
MARCÃO BOTELHO - Primeiro Os Porcos, depois Ofensa Social, que tinha Jerry Marlon no baixo, eu e Jorginho Page nas guitarras, Killer Band na bateria e Luciano Grey nos vocais. A nossa estréia foi na festa de aniversário de Jerry, na sala da casa dos pais dele, em São Gonçalo. Foi um horror para os convidados, que saíram de mansinho, mas uma honra para banda por ter criado um mal-estar terrível, kkkkk. Tocávamos umas três ou quatro música nossas (o “hit” era A saída é a anarquia) e o resto era cover do Camisa, a nossa matriz, kkkkkk. Depois Cláudio Lacerda chamou a gente para tocar no Instituto Feminino (sic), mas agora com ele na guitarra e eu virei “cantor”. Aí nos tornamos os CDFS por conta da ocasião, né? Esse show entrou para as histórias lendárias do rock roll em SSA, por conta de uma treta que rolou com uma banda de axé music, de outros estudantes, que iria tocar depois da gente. Os caras levaram uma turma barra pesada dos Barris e aí rolou um briga imensa, correria pelas escadas, gente pulando os muros, espancamentos, gritaria. Dizem, não sei, que foi por minha causa, simplesmente porque quando vi os caras afinando uma guitarra baiana, símbolo máximo do que mais odiávamos, mandei os “axés” se fuderem e declarei guerra aberta “à música de carnaval”, como dizíamos na época. Eu escapei da surra por pouco, entrando em um ônibus que passou na hora H. O chato é que já tínhamos planejado roubar a guitarra stratocaster Giannini da escola, que já estava escondida em algum lugar. Mas veio a confusão e tivemos que fugir, kkkkkk. Fiquei proscrito e proibido de andar nos Barris por um bom tempo. Quando fomos devolver a bateria a Hélio Rocha, que morava nos Barris, roubamos o revólver 38 do pai de Jorginho e fomos armados. Quem conseguiu e negociou minha liberdade condicional foi Hélio Rocha, que morava no bairro, era meu amigo e conhecia a turma de lá. Ele então convidou a mim e a Jerry para entrarmos no Delirium Tremens.
NOITE PONTO SOM - Como era fazer rock punk soteropolitano na década 80? Onde aconteciam os shows e que casas noturnas eram o ponto de encontro da galera rock, dessa época?
MARCÃO BOTELHO - Na verdade, era como disputar uma corrida de cavalos montados em um jegue manco. E eu não quero com isso “auratizar” a nossa cena, como se fôssemos heróis injustiçados crônicos e pobres coitados excluídos. Era a opção implícita estar à margem, criar conflitos, ir de encontro ao consenso, como era típico do niilismo, podemos dizer, punk. Embora quiséssemos também cavar tocas no, digamos, mainstream. Mas Salvador era ainda mais acanhada do que é hoje, mais isolada das “capitais”, e ainda aquela “utopia de lugar”, a terra da harmonia dos contrários, a pequena cidade grande, capital e província, mais colonial que industrial... O Camisa tocou em lugares sem uma relação com o rock, tipo Casa dos Festejos e New Fred’s, que eram espaços para serestas ou grupos folclóricos etc. Mas aí sugiram os circos Relâmpago e Troca de Segredos, onde rolaram grandes shows que juntaram o público ouvinte do Rock Special. Nós ainda não avaliamos a importância do radio e do programa de Marcelo como catalisadores dessa cena. Quem era o público dos primeiros shows do Camisa? Os ouvintes do Rock Special, basicamente. Eu conheci todos os meus parceiros a partir daí, nos shows do Camisa, que foi um fenômeno quase imediato de público desde os primeiros shows. O público ouvinte que estava ligado em rede pelo rádio e era virtual se encontrou nas portas dos shows e daí surgiram outras bandas. Como os shows do Camisa eram experiências de choque extremas, a cena se desdobrou muito rapidamente. Na verdade, o Camisa, para o bem ou para o mau, quer a gente queria ou não, abriu uma ferida narcísica naquela forma de pensar e inventar a identidade na Bahia, a chamada baianidade. Era uma ruptura, com a qual os jovens que ouviam as informações mais recentes do rock, principalmente o punk e pós-punk, se identificaram de imediato, porque não tinham grande interesse em Tropicália, Novos Baianos, Clube da Esquina, A Cor do Sono etc., pois não tinham experimentado o momento heróico dessas gerações que vieram antes. Ou seja, o que era ruptura nos 60 e 70, já havia se tornado “tradição” no início dos 80. A exceção, graças a Marcelo, era Raul, é claro.
NOITE PONTO SOM - Com relação a equipamentos de sons, tinha alguém que ficava na “responsa” de equalizar o som dos shows ou eram vocês mesmos? Como acontecia esse esquema?
MARCÃO BOTELHO – Som com estrutura profissional, naquele momento, que eu lembre, só João Américo Sonorizações, que era o sonho de consumo das bandas. Depois Macedo Marques e Waltinho Seixas abriram a Natura Som e Luz, que praticamente patrocinou e apoiou vários shows, inclusive do Ramal 12. Nicolau Rios, do Trem Fantasma, também foi importante pra caralho e devemos muito a ele, pois, além de mixar vários shows, às vezes com uma concepção sonora, digamos, bem psicodélica, foi o grande agitador, na produção, daquela cena, organizando muitos festivais, fazendo as fotos de divulgação, correndo a cidade naquela Brasília vermelha caindo aos pedaços, que, por sinal, virou um ícone do rock roll local, inclusive por aparecer nos cartazes, principalmente os paralamas carcomidos pela ferrugem... Lembra do carro do Detetive Muttley? Pois é, perde para a Brasília de Nicolau.
NOITE PONTO SOM - De que forma as bandas ganhavam público?
MARCÃO BOTELHO - Cara, era mais no boca-a-boca mesmo, pois quase todo mundo se conhecia dos shows do Camisa, e o público das bandas eram as próprias bandas e os amigos das bandas, basicamente. Cartazes, filipetas e os impagáveis big hands de Joelino, que fazia quase de graça. Pichações nos muros rolavam muito também e eram “um meio de comunicação” que achávamos eficaz.
NOITE PONTO SOM - A mídia divulga os eventos?
MARCÃO BOTELHO - Às vezes, rolavam umas notinhas nos jornais, sobretudo na Tribuna e Jornal da Bahia, que davam mais espaço para as bandas. Marcelo também mandava uns recados via rádio.
NOITE PONTO SOM - Os CDFS no Circo Relâmpago em 1984: cena rocker punk. Como avalia o cenário atual em relação há aquele período?
MARCÃO BOTELHO – Bem, houve um momento, logo após a ida do Camisa para o sul, em que se esboçou um “movimento punk” em torno das bandas, embora muitas delas não tivessem qualquer envolvimento programático com movimentos. Como dizíamos na época, só acreditávamos no movimento pélvico e das ondas. Mas, por conta das referências sonoras que Os CDFS tinham, U.K. Subs, Cockney Rejects, Stiff Little Fingers, MC5, Tom Robinson Band (esta era uma obsessão minha e do guitarrista Cláudio Lacerda) e, principalmente, depois que inventaram (eu juro que não fui eu, ao contrário do que dizem) um significado oculto para a sigla CDFS, Camadas Dos Fodidos Sociais, muito embora fôssemos uma Cambada De Fodidos Sociopatas, muita gente da periferia de Salvador, identificada com o punk, aparecia nos shows. Lembre-se que éramos todos da perifa, Jardim Cruzeiro, São Gonçalo, Pernambués, Beiru etc. e aí os amigos do bairro davam uma força e formavam um pequeno público. Aquele show no Relâmpago foi produzido por Nicolau Rios, é claro.
NOITE PONTO SOM - O excesso de violência durante os shows foi um dos entraves para o fortalecimento da cena punk baiana na década de 80? Recorda-se de algum conflito grave?
MARCÃO BOTELHO – Cara, têm umas cabeludas, como aquela em que um cara cuspiu em Gustavo (guitarrista do Camisa) e este chutou a boca do sujeito. Porém, a mais engraçada foi no Festival da Band, no Troca de Segredos e no Relâmpago, quando um monte de parasitas apareceu por lá e tentou tocar. O público não comeu nada, né? Cid Guerreiro, então Cid Pororoca, chegou com um figurino que misturava Poderosa Ísis com Rodaque e levou várias correntadas nas sapatilhas cheias de lantejoula. A vocalista da Abuso de Poder ficou com um pé preso nas mãos de uns punks na frente do palco. Eduardo Scott sugeriu “sem maldade” a Conde Espinheira, baterista da Velorium, uma banda de hardcore, como “seria legal puxar uma levada de blues no meio do hardcore”. E o cara fez isso! Rolou uma treta séria e a banda, acho, acabou ali no palco mesmo. Eu, sinceramente, gostava desses conflitos, embora fosse frouxo o suficiente para não participar deles. Vi tanta história que não dá pra contar aqui.
NOITE PONTO SOM - Rolava rivalidade entre as bandas no sentido de algumas tocarem em certos locais enquanto outras não?
MARCÃO BOTELHO – Rolava, é claro. Os caras das bandas eram os mais cruéis críticos de outras bandas, porque eram o primeiro o público e o primeiro algoz. Rolava ciumeira, alguns eram mais ortodoxos em suas preferências sonoras, outros mais “ecléticos”, uns se vestiam de uma forma, outros de outra, coisas típicas de subculturas tribais em ambientes urbanos.
NOITE PONTO SOM – Quais diferenças houve em relação a festivais de música punk da década de 80 para agora?
MARCÃO BOTELHO – Não sei, cara. O punk se desdobrou em um monte de coisa, né? Ficou dogmático em alguns casos, arrumadinho em outros, mas a base do gênero ainda está ativa. É por isso que eu ainda posso tocar. Mas eu perdi o contato com a cena, com os festivais.
NOITE PONTO SOM - Com relação à banda, porque os Coveiros do Cover resolveram retornar?
MARCÃO BOTELHO - Somos amigos há quase trinta anos. Em um churrasco na casa de David Roth, após analisar o desenvolvimento avassalador de nossas barrigas, lancei um desafio: que tal batermos um baba nos fins de semana? E David ponderou e respondeu: que tal a gente se reunir, não em um campo, mas em um estúdio e tocar de brincadeira apenas canções do The Clash, nossa banda predileta? É claro que a proposta dele foi aceita. Ainda bem. O baixista Jerry Marlon (nosso guitarrista), que é músico profissional, marcou uma pauta em um estúdio, que é nossa casa hoje, o Zion Flag, de Conrado. Nos ensaios, tomamos gosto e “fundamos” o Zé Clash. Depois Jerry gostou da onda e propôs que fizéssemos um show. Ensaiamos outras coisas que adoramos também, principalmente The Who e Sex Pistols. Aí alguém sugeriu tocarmos as nossas músicas dos anos 80, Espírito de Porco, Ramal, 14º Andar. E aí foi. Nosso primeiro show aconteceu em 25 de julho deste ano, no Farol Music Bar, no Rio Vermelho, em Salvador, com um público que sinceramente não esperávamos, mais de 200 pessoas. Foi mais uma festa e não tinha nada de Ploc. Vamos tocar pela primeira vez em Camaçari, no sábado 7 de novembro. Depois fazemos outro show em Salvador, na sexta-feira 13 de novembro, na segunda festa Troca de Segredos, no Groove Bar (Barra). Estamos na maior expectativa com o show de Camaçari. Por ser uma cidade próxima ao Pólo Petroquímico, a Detroit baiana, kkkkk, onde residem pessoas ligadas à vida industrial, acho que a cidade tem um público de rock grande e que haverá afinidade com o nosso tipo de som.
NOITE PONTO SOM - Clássicos do punk (Ramones, Sex Pistols, The Clash) e mais canções que fizeram a trilha dos anos 1980 (Talking Heads, The Jam, Bowie...) estão no repertório. Mas os Coveiros têm a pretensão de gravar algum trabalho autoral dentro dessa proposta?
MARCÃO BOTELHO – Boa pergunta... Ainda não discutimos isso na banda. O projeto inicial é tirar do baú o repertório que compusemos nos anos 1980, composições de outras bandas da cena local da época e as coisas que a gente gostava de ouvir. A banda vem se dedicando a essa proposta de memória dos anos 80, por enquanto. Acho que ainda temos muito o que fazer nesse sentido. Nosso guitarrista, Marcos Clement, já falou na possibilidade de novas composições. Quem sabe mais adiante... Ou talvez podemos voltar à ideia original e bater um baba.
NOITE PONTO SOM – Atualmente, como você avalia a cena punk baiana?
MARCÃO – Cara, eu não saio muito de casa, fico à noite ouvindo música, vendo filmes, limpando os vinis, lendo. Não durmo cedo, sou um notívago nato, mas não freqüento muito os shows das bandas, embora ouça as músicas, compre os discos. Gosto do som de Messias, do Retrofoguetes, do Theatro de Serafim e ouço até hoje o disco Heartfelt Sessions, do Deadbillies, que eu considero “um clássico”.
NOITE PONTO SOM - Quais são os próximos projetos dos Coveiros do Cover?
MARCÃO BOTELHO – A vantagem de ser “veterano” no rock é que a gente faz as coisas sem ansiedade, tudo no seu tempo para que o resultado seja de boa qualidade. Também tem o fato de todo mundo ter atividades paralelas. Pretendemos continuar divulgando informações sobre a cena rocker baiana dos anos 80 tanto nos eventos como no blog da banda um espaço que tem gerado debates interessantes.
Mais informações:
As fotos no estúdio de parede azul são de Fábio Marconi.
Foto 1 - Jerry, David, Marcão.
Foto 2 - Jerry, Marcão.
Foto 3 - Banda - Coveiros do Cover
Foto 4 - CDFs - 1984
Foto 5 - Ofensa Social - 1982
Foto 6 - Claúdio Lacerda- Banda Ramal 12
Foto 7 - Foto em PB – Banda Ramal 12 – crédito Hamiltom Pena.
Foto 8 - Banda Delirium Tremens
Blog - www.coveirosdocover.blogspot.com
6 comentários:
Ótima entrevista! Valeu Neri!!!
Acabo de eleger Marcão, por unanimidade, o porta voz dos Coveiros do Cover ou do CCBB (Coveiros Clube Babístico da Bahia)!!!!
Privilegiada memória e grande poder de análise. Bela entrevista, veterano Marcão.
Gostei da entrevista, Neri!
Putz veio,botou pra fuder demais nessa entrevista!Gravem material proprio de vcs,tenho certeza q dai pode sair coisa boa!
Grande Marcão!!! bela entrevista - LET'S ROCK!!!
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